Muitas vezes digo aos meus amigos que as peripcias que passei e passo para escrever a biografia de lvaro Cunhal davam um livro parte, com todos os ingredientes de um romance entre o Le Carr e uma coisa mais pcara, ou seja, uma combinao quase impossvel e muito improvvel. Desde incio que sabia que a iniciativa seria dificultada pelo prprio lvaro Cunhal e que este colocaria todos os obstculos possveis, ele e o PCP. Sabia tambm que escrevia no fio de uma navalha muito especial, a de estar a biografar algum que estava vivo, que era muito hostil iniciativa (e ao autor) e que podia com muita facilidade desclassificar a seriedade do trabalho. No fundo, a vida era dele e bastava Cunhal dizer que meia dzia de afirmaes eram erradas ou “falsas” para criar uma imagem de falta de rigor. Esta possibilidade era tanto mais real quanto eu escrevia sobre uma histria em grande parte por contar, sem fontes secundrias, com fontes primrias de muito complexa interpretao (como as fontes de polcia, ou os arquivos soviticos), mas em muitos casos sem fontes nenhumas e com escassssimos testemunhos. Cunhal nunca o fez e soube mais tarde por testemunhos de pessoas que o contactaram nos ltimos anos da sua vida, que ele elogiou a biografia que nunca desejara que fosse escrita.

Quando comecei a recolher elementos sobre a sua infncia, famlia, adolescncia, e anos de jovem comunista, a matria do primeiro volume, as pessoas com quem podia falar eram na sua maioria septuagenrios e octogenrios, com idades prximas ou mais velhos que Cunhal. Tratava-se de seus familiares, companheiros de escola e universidade, amigos pessoais, membros do PCP e da FJCP nos anos 30, amigos e conhecidos da sua famlia, em particular de seu pai. Cunhal fez o que eu esperava: contactou alguns deles, em particular aqueles que sabiam e podiam contar factos relevantes, pedindo-lhes que no colaborassem. Na maioria dos casos teve sucesso. Ludgero Pinto Basto, que aceitara prestar um testemunho, marcou um encontro em sua casa e quando l cheguei e toquei porta ningum respondeu. Vim mais tarde a saber que Cunhal lhe telefonara. Carolina Loff recusou-se a falar de imediato. E a Stella Piteira Santos Cunhal telefonara a propor-lhe “tomar um ch”, apesar de no se falarem h muitos anos. Mas Stella recusou e aceitou falar sobre a sua vida, e testemunhar sobre Cunhal, a sua famlia, em particular sua me, sobre a qual muito pouco se sabia com excepo de um notvel episdio relatado por Mrio Soares, e sobre todos os factos da sua vida que se interligavam com a de Cunhal, sobre Incio Fiadeiro, sobre Piteira Santos, sobre Pvel, e sobre muitas e muitas histrias, nem todas muito agradveis, a comear para ela prpria. E sabia muito, muito mesmo, da “maledicncia” da oposio, histrias e anedotas, aventuras e amores, fidelidades e infidelidades.

Muito disso ficou de fora da biografia de Cunhal, mas ficou registado para que as pessoas dessas dcadas de histria escondida possam ser mais pessoas, seres humanos com as fragilidades de ns todos e no “heris” e “traidores” a preto e branco de uma histria “oficial”. Assim, foi ela a primeira a quebrar com grande coragem e sem temer as crticas que lhe foram feitas uma absurda omert que protegia a histria real do PCP, para manter a fico da histria oficial.

Stella vivera a vida atribulada comum na parte da oposio portuguesa ligada ao PCP, muitas vezes do lado torto, ou seja, de fora mas demasiado perto. Stella acompanhara alguns jovens da sua gerao na militncia comunista, fazia parte daquelas pessoas de estrita confiana das frgeis direces dos anos 30, dera “apoio” na dactilografia de actas e snteses de reunies do topo do partido, fizera transportes e entregara originais para a imprensa clandestina, participou na fuga de Pvel, esteve presa vrias vezes, transportou Delgado e, no exlio argelino, foi uma das vozes da Rdio Voz da Liberdade, junto com Manuel Alegre.

Numa altura em que as relaes pessoais e familiares acompanhavam de muito prximo o ncleo dirigente do PCP, Stella vivia perto do centro do poder comunista e, como acontece muitas vezes no universo dos partidos comunistas, isso significava uma vida grupal e muita endogamia. O seu primeiro filho era afilhado de lvaro Cunhal e o seu segundo marido, com quem viveu a maior parte da sua vida e que acompanhou para o exlio, teve uma das biografias mais complicadas na histria comunista portuguesa. Quadro intelectual ascendente, dirigente juvenil, membro do comit central, “especialista” dos militares, caiu em desgraa quando tentou aplicar a Portugal as ideias do dirigente americano Browder, fruto das alianas da guerra de 1939-45 e das esperanas de democratizao que tinham trazido. Afastado dos seus cargos, depois expulso, mais tarde tratado de “traidor” e hostilizado e isolado pelo PCP em todas as iniciativas poltico-culturais que fazia, como o jornal Ler, teve direito a alguns dos mais vitrilicos e caluniosos textos dos anos de chumbo do PCP. Stella tambm no escapou aos antemas e foi tambm insultada em idntica linguagem, que nunca perdoou ao PCP. O mesmo ataque repetiu-se quando do chamado “golpe de Argel”, a que se somou o duro conflito com Humberto Delgado. Cunhal veio mais tarde a demarcar-se desses documentos, mas at aos dias de hoje o PCP nunca reparou a memria de Piteira Santos, nem agora a de Stella.

*

A minha admirao, estima e amizade com Stella Piteira Santos, que faleceu anteontem, comeou nas conversas em sua casa, num canto junto de um pequeno jardim, diante de um quadro de Avelino Cunhal. Eu levava-lhe figos e limes, livros sobre a Arglia e papis, alguns sobre ela ou sobre Piteira Santos, que entretanto perdera ou nunca vira, e conversvamos durante horas. Stella era ento quase desconhecida do grande pblico, cheia de histria e de estrias, e, embora tivesse uma preciosa agenda com os nomes e nmeros de telefone de tudo o que era gente da oposio at ao MFA, sentia-se muitas vezes sozinha e esquecida. Sentia que o interesse que lhe manifestava e a amizade que se construa lhe fazia uma companhia que lhe faltava.

Nos seus ltimos anos, Stella cuidou da memria do seu companheiro Piteira Santos, oferecendo os seus papis ao Centro 25 de Abril da Universidade de Coimbra e, depois de se conhecer o seu papel na histria do PCP atravs da biografia de Cunhal, deu vrias entrevistas e depoimentos, inclusive para a televiso, sobre a sua vida e experincia, saindo do esquecimento a que tinha sido votada. Como todas as pessoas que tinha alguma coisa para dizer, apreciava essa fugaz fama e tinha nisso uma certa vaidade e ainda bem. Na injustia que fazemos todos aos velhos, quanto mais doente ficou e passou a viver num lar, menos a vi, talvez quando mais precisava que eu a visitasse. Mas a sua memria perdura, porque a sua vida tinha vida, ou seja, toca na vida dos outros. * De um documento do PCP. (

Verso do Pblico de 25 de Janeiro de 2009.)

Um pensamento sobre “

  1. Parece-me que a histria do PCP, como as outras organizaes comunistas sua esquerda, uma histria de pessoas, por vezes ou melhor, em certos momentos muito mais do que das suas idias, e o facto de serem relativamente poucos, concentrados num universo claustrofbico e perigoso, em que cada um trazia o contributo da sua forma individual de estar e viver, fazia exaltar os sentimentos que nutriam seja pelo Partido seja inevitavelmente uns pelos outros. Embora cada um tivesse o seu fundo terico, bebido num ambiente colectivo como Jos Gregrio ou elaborado com o contributo de fontes mais heterogneas, as posies do Partido eram decididas por um ncleo reduzido de pessoas, e este ncleo era inapelvel uma vez proferida uma sentena sobre eventos ou pessoas.
    Assim, dito isto, refira-se que embora Cunhal por exemplo tenha escrito que um dos erros do Partido e da IC foi o de terem sido assumidas posies como a que acima citada a respeito de camaradas que o no o mereciam (ver por exemplo “O Partido de Paredes de Vidro” em duas passagens significativas), a verdade que nenhuma autocrtica oficial foi feita pelo Partido, nem foi feita a reabilitao desses comunistas. Mais: as prticas estalinistas de apagar eventos e personagens passando a ignor-los como se no existissem, continua a existir no presente.
    Ser que o PCP vai esperar at ter passado por completo a memria das pessoas? Parecer-se nisto com o Vaticano e a reabilitao das vtimas da Inquisio?
    Abrao
    Augusto Mouta

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