Reproduzo aqui o artigo “Das mulheres ou apenas de algumas mulheres” que publiquei no Público de 31 de Março de 2005.

A ausência ou presença de mulheres nos governos e na política provoca ciclicamente um debate que reflecte uma já longa história da intervenção no espaço público em função do género. É um debate cheio de armadilhas pelo que ganha com a distanciação histórica, agora que os “estudos femininos” começam a ter um cada vez maior peso na academia.

A recente publicação de um Dicionário no Feminino (Séculos XIX-XX) pelos Livros Horizonte deveria retratar a evolução do papel das mulheres na vida pública, entendida em sentido lato, no publicismo, na escrita, no associativismo e na política, em geral, ou como feministas, mulheres preocupadas com os problemas das mulheres e reivindicando uma visão feminina do mundo. Quando comprei o Dicionário, com o seu volume de 900 páginas e 3000 entradas, observadas de passagem na livraria, pareceu-me tudo bem. Gosto de dicionários e enciclopédias, cronologias e bibliografias e sei quanto é raro em Portugal as pessoas dedicarem-se a um trabalho que é muitas vezes e em primeiro lugar, trabalho para os outros. Era com grande contentamento que via sair um dicionário desta dimensão, não só porque facilita o trabalho de investigação, a outros e a mim, que lido com literalmente milhares de nomes quase sem identificação, como também porque sei o esforço que é preciso para fazer uma obra destas e o seu interesse cientifico e cívico.

Depois comecei a folhear o dicionário e a procurar determinadas entradas que me pareciam óbvias. Comecei por Irene Lisboa. Nada. Uma a seguir à outra, todas óbvias, e nada. Seria talvez da ordem alfabética a partir do primeiro nome, uma bizarria que eu pensava que as dificuldades de consulta ao Dicionário Bibliográfico do Inocêncio deveriam ter vacinado todos os organizadores de dicionários. Descobri depois que as razões de tal ordenação, que dificulta e muito a consulta, são ideológicas, ou seja destinam-se a “recuperar a identidade feminina não a fazendo depender do apelido”. Tenho muita dificuldade em saber se há mais sexismo em chamar-se Maria da Anunciação ou em usar um apelido suspeito de pertencer ao marido. Aliás o Dicionário lida mal com os maridos, variando na sua identificação ou não por critérios que dificilmente se compreendem, do mesmo modo que ilude as uniões de facto mesmo quando são públicas e se alude aos filhos que delas resultaram. Por exemplo, para militantes comunistas, Vírginia Moura aparece como casada com Lobão Vital, enquanto se omite que Alda Nogueira viveu com Sérgio Vilarigues, a cujo filho se alude. Num e noutro caso, o conhecimento do companheiro é relevante.

Seja como for não se justifica complicar a consulta de um dicionário, muito mais agora que, com as tecnologias informáticas ao dispor, é completamente injustificado que não haja pelo menos uma dupla remissão entre o primeiro e o último nome. Sabia lá se uma Correia, que eu conhecia como Antónia, era Maria Antónia ou Ana Maria Antónia, ou Joana Antónia. Ficava sempre com a sensação que deveria lá estar, eu é que não encontrava o nome certo. O problema é que não estava, nem ela, nem muitas mulheres com um papel importante no século XX português.

No endereço na rede do projecto encontrei a lista das cerca de três mil entradas, o que me permitiu começar a fazer procuras sem receio de me enganar e assim confirmar omissão sobre omissão injustificada, sem ter que ler o dicionário de fio a pavio para encontrar um nome. A análise desta lista revela a principal debilidade do Dicionário , o carácter desconexo da lista de entradas, fazendo coexistir o extremo detalhe com critérios erráticos de inclusão e exclusão.

A questão está pois na concepção do dicionário, numa metodologia desequilibrada quanto à inclusão dos nomes e, por fim, na ausência, na esmagadora maioria das entradas, de qualquer trabalho suplementar de investigação que torne útil o dicionário como dicionário. Este organiza a informação do que já se sabe, tem entradas desenvolvidas para as mulheres mais conhecidas, algumas novas entradas, cuja qualidade não está em causa na sua maioria, mas quanto às mulheres menos conhecidas é pouco mais do que uma listagem, sem que nada o justifique. Na minha casa, numa hora e com meia dúzia de livros acessíveis a todos, só com base em índices onomásticos, poderia facilmente acrescentar muita informação àquilo que seis dezenas de investigadores não conseguiram encontrar.

Lendo-se o prefácio e as notas metodológicas, excessivamente defensivas vê-se que os responsáveis têm consciência que o Dicionário está longe merecer o título e percebe-se porque razão se chegou a este resultado. Uma coisa fundamental num dicionário é o critério inicial de inclusão de nomes. Por exemplo: incluir todas as mulheres que escreveram em revistas ou publicaram livros, ou todas as mulheres com funções políticas (deputadas, procuradoras à Câmara Corporativa, membros de direcções partidárias), por aí adiante. Fazem-se listas completas – um dicionário desta envergadura tem que trabalhar com listas completas – e depois acrescentam-se outras listas com outros critérios. Este critério pode ser mitigado pela relevância tendo em conta os limites da edição em papel e ser complementado por uma base de dados em linha. Não foi esse o critério seguido e o resultado parece inacabado ou apenas principiado.

Este Dicionário vive acima de tudo de alguns trabalhos anteriormente publicados e que lhe facilitaram a vida. É o caso do estudo de Ivone Leal sobre as revistas femininas, uma das contribuições básicas para as listagens de colaborações na imprensa. Depois vive de algumas listas de membros (como da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas), assinaturas em abaixo-assinados, listas de correspondência , que fornecem milhares de entradas e que são, sem dúvida, a matéria prima, mas apenas a matéria prima. Essas listas não são tratadas: por exemplo, quem fez a entrada de Stella Correia Ribeiro não sabia que este era o nome de Stella Piteira Santos, ou, no caso de Maria Clementina Ventura, nunca recorreu ao arquivo da PIDE para saber quem era. Ambas aparecem como meros nomes numa lista e nada mais se procurou saber. Se era para ficar assim não valia a pena editar em livro, bastava a listagem electrónica e adiar a sua publicação até haver mais substância.

Na área que conheço melhor, a da política oposicionista, o Dicionário é pouco útil apesar do seu título genérico e enganador, e a intenção expressa de retratar o “emergir das mulheres na vida da sociedade”. Lá vem uma lista detalhada de entradas sobre congregações religiosas, organizações republicanas e maçónicas mas muito pouco sobre organizações políticas de mulheres depois de 1926. Onde está o Movimento Democrático das Mulheres e os seus percursores? Onde está a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, cujas listas são usadas, mas que não tem entrada autónoma como organização? Onde está a Obra das Mães para a Educação Nacional, ou o Movimento Nacional Feminino?

A maçonaria está particularmente representada, em contraste com a decisiva área do comunismo e das organizações “unitárias” a que, no fundo, pertencia o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas na década de quarenta. Pensei ao princípio que isso se devia a uma exclusão total, mas a presença de nomes dispersos e desgarrados na sua importância – Alda Nogueira, Virgínia Moura, Nina Perdigão, Irene Castro, Catarina Eufémia – contrasta com a completa ausência de Luísa Paulo, Aida Paulo, as irmãs Ferreira, Maria Machado, Helena Magro, Maria Luísa Costa Dias, Cecília Areosa Feio, Carolina Loff, Cândida Ventura, Fernanda Paiva Tomás, Dalila Rocha, Manuela Câncio, por aí adiante. A relevância de algumas destas mulheres está em terem sido dirigentes políticas quando mais nenhuma mulher fora do regime o era: Loff despachou com Manuilsky e Dimitrov, ou seja o topo da Internacional Comunista, abaixo de Staline; Machado era uma activa militante esperantista, Georgete e Sofia Ferreira dirigiram áreas de trabalho no PCP, Cândida Ventura foi um mito da clandestinidade nos anos cinquenta, sobre a qual se escreveram poemas, tendo como autores, entre outros, Mário Dionísio. Várias destas mulheres escreveram livros onde a condição feminina está bem presente, mas não estão representadas num Dicionário que faz entradas para uma ignota colaboradora do Almanaque das Damas e bem. O que está mal não são essas entradas, são as omissões.

As publicações da oposição, em particular as comunistas mas não só, são totalmente ignoradas. Como é possível fazer uma história das mulheres portuguesas no século XX esquecendo publicações como as 3 Páginas para as Camaradas das Casas do Partido e a Voz das Camaradas, documentos únicos não só para a história política como também para o estudo da mentalidade? Essas publicações eram escritas por mulheres e para as mulheres, e funcionárias do PCP como Cândida Ventura, Alda Nogueira, Fernanda Paiva Tomás tiveram aí um papel importante. Nem sequer hoje se coloca o problema do acesso visto que o arquivo da PIDE/DGS as contém, como aliás muita outra informação que parece ter sido negligenciada. Uma mulher que aderisse ao Conselho Nacional das Mulheres na década de quarenta tinha muitas probabilidades de ser fichada na PIDE, como aliás acontecera com os nomes da Associação Feminina Portuguesa para a Paz.

Para um amador de dicionários, custa reconhecer este resultado insuficiente, tanto mais que havia condições excepcionais para se ir muito mais longe. Apoiado por tudo o que é instituição, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Assembleia da República, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, o Instituto Camões e a Comissão Para a Igualdade e os Direitos das Mulheres, foi preparado por uma enorme equipa universitária com mais de sessenta pessoas. Seria injusto ignorar que muito do que lá está tem relevância e interesse. O problema é o que não está lá e nenhum critério justifica que não esteja. O problema não é com muitas das entradas é com o dicionário em si. Por isso, o Dicionário é em parte uma oportunidade perdida e como estas oportunidades não abundam é pena que esta se tenha desperdiçado.

4 pensamentos sobre “

  1. Há uns tempos concordei com a sua afirmação feita num qualquer espaço televisivo sobre a inexistência de crítica de livros em Portugal. Quase sempre apenas lemos resumos e um ou outro remoque “socialmente” correcto. É pobre e triste para quem aprecia uma boa crítica sobre um livro, como é o meu caso. Quando falo em crítica estou muito longe de me manifestar apreciadora das correntes francófonas. Sinceramente é bem mais interessante, para mim, a crítica literária anglófona, pois a francófona mais me parece uma enaltação à sabedoria do crítico e pouco reveladora da obra em questão. Parti então com expectativa para ler esta sua crítica ao dicionário no feminino. Não conhecendo a obra em causa, não posso rebater a essência do que diz, contudo deixe-me dizer-lhe que fiquei bastante triste com o tom da sua crítica. Ela inscreve-se no campo do que eu poderei chamar de crítica “ressabiada”, sinónimo da intelectual “invejice” nacional. É prática corrente no nosso país e infelizmente, ou ser-se medíocre ou arrogante. A mediocridade é tão insuportável intelectualmente como a arrogância, principalmente quando em nada contribui para o bom estado das letras no nosso país. Dirá: mas assim caímos no campo oposto criticar de forma “socialmente” correcta. Não! há um meio termo o tal que aproveita o que de bom poderemos usufruir com a novidade, dando igualmente ênfase aos aspectos menos positivos e a melhorar. Quer um exemplo notável do que estou a pretender dizer? Leia a crítica de Vasco Graça Moura ao Equador de Miguel Sousa Tavares e perceberá.

  2. D. Pires Ribeiro

    Com efeito, é cada vez mais difícil a um leitor e mesmo a um autor encontrar críticas de livros feitas com qualidade e isenção, no entanto os “críticos” e “formadores de opiniões” proliferam como cogumelos depois da chuva por tudo quanto cheire a comunicação – seja jornal, revista, pasquim, tv ou rádio (muitos reproduzem-se nos vários media como clones – as mesmas caras, os mesmos tiques, as mesmas frases banais). Podem nunca ter escrito um livro, não terem formação literária, podem até dar erros de vocabulário e de sintaxe, mas não hesitam em falar sobre qualquer tema ou género de livro (e até são pagos para o fazerem, mesmo em revistas ditas literárias) porque, neste país em que reina a iletracia e cerca de 60% dos seus habitantes afirma que “não precisa de aprender mais”, quem tem olho – ou amigos nos media – é rei! Quando o tema, sobretudo se for histórico ou científico, lhes foge, não recuam perante a dificuldade, pois há sempre o recurso seguro de se limitarem a resumir a história.
    A outro nível, como diz Nancy Brown, há aqueles que se empenham em exibir a sua cultura e as muitas leituras feitas e que, de tanto se escreverem e se reverem nas suas próprias palavras e nas citações dos teóricos (estrangeiros, obrigatoriamente!), se esquecem por vezes, no seu texto, de tratar do texto que criticam.
    E há sobretudo aqueles que fazem crítica através do filtro das suas simpatias ou aversões ideológicas, políticas, religiosas ou outras, sem conseguirem (ou não quererem) impor-se a objectividade e o distanciamento que, além do saber, são os pilares de uma boa análise de um livro. Esses “ressabiados”, como lhes chama Nancy Brown, ou fundamentalistas, não hesitam em destruir em poucas linhas um livro de qualidade cujo tema ou autor lhes desagrade e em incensar uma má obra mas que esteja em sintonia com as suas convicções. Estes são os que causam mais danos aos leitores, à cultura e ao mundo.
    D. Pires Ribeiro

  3. Mendo Estevens

    Li com atenção a crítica que publicou no “Público”. Ainda não avistei o Dicionário em causa, provavelmente por ter andado demasiado distraído (concentrado noutras coisas). Mas não concordo nem um pouco com o tom geral dos comentários anteriores. Querendo ser breve, digo-lhe que as suas observações me parecem ser justíssimas neste como noutros casos em que se publica tão facilmente (pudera, edições subsidiadas abundantemente!) e em que se investe muito pouco ou nada em investigação, não passando as obras que daí resultam de uma compilação mal amanhada (especialmente quando da responsabilidade de fiéis de uma qualquer “capela” – os Centros de Investigação também podem sê-lo e são-no nalguns casos!). Imagine o JPP que há coisa de um ano fui convidado a participar numa obra do género. Nenhuma reunião nem mecanismo algum equivalente estava previsto para juntar os colaboradores no dito Dicionário! E também verba nenhuma era atribuída aos mesmos para prepararem os verbetes cuja redacção lhes era entregue de forma bastante arbitrária. Está visto que há muita produção científica que depende de mão-de-obra barata, de mestres e doutores desempregados que esperam acrescentar mais umas letras ao CV republicando pela enésima vez o que escreveram nalguma tese de mestrado ou doutoramento. Concordo, pois, totalmente, com as suas apreciações críticas pondo em causa a precipitação de quem poderia e deveria amadurecer melhor o produto final em vez de o colocar despudoradamente nas estantes das livrarias e das bibliotecas.

  4. Eduardo Sousa

    Uma crítica oportuna às omissões imperdoáveis de um Dicionário de Mulheres

    A crítica de Pacheco Pereira ao «Dicionário no Feminino» é oportuna e só pode ser subscrita por todos os que já tiveram a oportunidade de consultar esse Dicionário. Para lá de questões básicas como a ausência de índices, mais grave e imperdoável é que uma obra financiada por diversas instituições públicas e realizada por pesquisadores conhecidos tenha sido editado apesar de ter lacunas e omissões por demais evidentes.
    Um Dicionário de Mulheres onde as mulheres trabalhadoras, as sindicalistas e anarquistas da Primeira República, não aparecem, apesar de terem sido feministas percursoras de uma época em que não eram muitas as mulheres que actuavam, debatiam e reflectiam sobre os problemas da sua condição, mas onde se multiplicam outros nomes irrelevantes de Irmãs e notáveis, só pode ser questionado. O mesmo pode ser dito para o período seguinte, o da resistência anti-fascista, como salientou Pacheco Pereira.
    Mesmo que não se espere em Portugal uma obra do género que Jean Maitron fez para o movimento operário francês, seria de esperar que nomes de mulheres conhecidas e referenciadas nos trabalhos sobre o século XIX e XX estivessem incluídas num dicionário deste tipo, até porque não abundam os nomes, principalmente no que se refere ao século XIX e primeiras décadas do século XX.

    Eduardo de Sousa

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