Apresentação a Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista / Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 / O Capital (Edição Popular), 2008 (edição internacional distribuída pelo Diário de Notícias).

1. Após mais de 150 anos a dominar o mundo, sim o mundo, como poucos, para onde foi Karl Marx depois de cair o último muro que defendia o “seu” território em 1989? O corpo maciço, peito, cabelo e barbas abundantes, sólido como um rochedo, pousado sobre a pedra com um centro de gravidade seguro, só parecido no bronze com o Balzac de Rodin, foi, em muitas terras do “socialismo real”, retirado da peanha e levada para esses “museus do comunismo” que atraem turistas americanos nas capitais do lado de lá do Muro. Como o seu túmulo verdadeiro estava escondido num cemitério suburbano de Londres, onde ocasionalmente delegações búlgaras ou mongóis deixavam um ramo de flores, eram essas estátuas a personificação do poder real da personagem, uma das que mais alto marca o século XIX e o século XX. Por onde anda hoje aquele que os maoístas peruanos chamavam a “primeira espada”?

2. Marx continua por todo o lado, mas está muito diferente daquilo que foi. A impregnação do marxismo em tudo, a começar pelo “texto escolar” e pelo discurso comunicacional, tornou-se tão normal, tão habitual que temos dificuldade em distingui-lo da “ideologia dominante” que ele esconjurava. É um marxismo deslavado, desprovido das suas intenções revolucionárias, longe dos seus actores históricos, transformado num mero discurso sobre a sociedade, sobre o conflito, sobre os “ricos e os pobres” já sem esse nome, perpassando no discurso da alter-globalização, nos debates sobre o preço do petróleo, mesmo nalguma vulgata ecológica, nas discussões esquerdistas sobre o Império. Deslavado, descaracterizado, mas também marxismo.

3.Marx continua forte nos livros de sociologia e de economia, menos forte nos de filosofia, menos nos de política. Na academia, o seu sucesso segue uma geografia bizarra, forte nos campus das universidades americanas, em França, na América Latina, mas esse marxismo universitário que ainda alimenta algumas revistas com o seu nome, já não é o mesmo Marx do “marxismo” que conhecíamos. Não é o mesmo Marx de Engels, de Lenine, de Staline, de Cunhal, mesmo de Lukács, Garaudy e Althusser, mas um Marx intelectualizado, transfigurado em mil teorias críticas que, do cinema ao feminismo, da antropologia bosquímana aos estudos de arquitectura apocalíptica, continuam a produzir centenas de livros e milhares de artigos por ano.
A Internet está também cheia de Marx, mas acompanhado agora pelos vários marxismos que o fim do comunismo deixou de considerar desviantes. Onde antes estava um Marx solitário, lido numa linha única por Engels, Lenine, e Staline, propriedade dos partidos comunistas que simbolicamente o tinham colocado numa estátua no centro de Berlim Leste e lhe publicavam a Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), a edição estandardizada dos textos, entre as academias de Moscovo e Berlim, há agora o Marx do Internet Marxist Archive, que inclui o caribenho C.L.R. James, o americano branco Hal Draper, o indiano Roy, os “esquerdistas” e conselhistas alemães e holandeses, os bordiguistas italianos, Gramsci, Guevara, Rosa Luxemburgo, mil e uma vozes que se digladiaram entre si, exactamente pela interpretação que faziam de Marx. Como deixou de haver uma legitimidade política da interpretação, primeiro em 1960 como conflito entre o PC da China e o PC da União Soviética, quando Marx era único e tinha uma linha de interpretadores autorizados, passou-se para uma multidão de vozes, afro-caribenhas, indías, feministas, homossexuais, chinesas, anarco-comunistas, marxistas-libertárias, marxistas críticas, psico-marxistas, etc., etc., todas dele se reclamando.

4. Esta confusão de vozes significa inseminação de ideias e conceitos a fazerem o seu caminho? Significa “sucesso”, como agora se costuma perguntar? Significa “sucesso”, mas não o sucesso que Marx desejava, não aquele para que escreveu a sua obra, do Manifesto ao Capital, não aquele a que dedicou uma vida que não se limitou a uma obra teórica, mas à acção política na Associação Internacional dos Trabalhadores e mais tarde nos primórdios daquela que vai ser a II Internacional. Aí há um significativo retrocesso, porque o Marx original considerava a política o teste da validade das suas ideias. Durante cento e cinquenta anos, tudo parecia correr tal como Marx desejava e previa, num mundo que foi varrido por revoluções que se inspiravam do seu nome, com centenas de milhões de pessoas envolvidas, em movimentos cuja dimensão não têm precedentes na história mundial, movendo mais gente simultaneamente do que mesmo as grandes religiões. Mas, o Marx dos dias de hoje, o Marx feminista, o Marx psicanalítico, o Marx dos vários “ismos” adjectivos, não inspirará nenhuma revolução. Bom, talvez no Nepal, onde em 2008 os maoístas tomaram o poder e acabaram com a monarquia. Também não foi para acabar aqui que Marx escreveu o Manifesto Comunista.

5. Olhando para trás, terá sido um equívoco que Marx tenha inspirado ou pelo menos tenha sido nomeado como inspirador das revoluções do passado, a começar pela que mais marcou a história do século XX, a revolução russa? Não. Não foi um equívoco. Esse teste pela “prática”, como diziam os marxistas, “o critério de verdade da teoria do conhecimento do materialismo dialéctico”, estava implícito no programa teórico do marxismo e falhou. O fracasso do marxismo político, cuja genealogia soviética não é necessariamente nem uma deturpação ou um desvio, teve a data marcada em 1989 quando o Muro foi derrubado, e dois anos depois quando acabou a URSS e, com ela, o sistema comunista mundial. Como afirmou Fukuyama, tinha acabado a História teleológica, a história que Hegel passou a Marx, a história com destino e direcção e que por isso se escreve com H grande.
O fim do marxismo político, do marxismo explícito como programa de acção, no “marxismo-leninismo”, no comunismo, está consumado e com ele o programa do Manifesto Comunista. A tentativa de garantir a “abolição da propriedade da terra”, dos direitos de herança, a centralidade da banca do estado única concessora de créditos e monopolista, a nacionalização de todos os meios de transporte, as industrias estatais e os sovkozes, a “obrigatoriedade de todos trabalharem” com o estabelecimento de “exércitos industriais”, o fim da separação entre o “campo” e a “cidade”, com distribuição regular da população por todo o país (Pol Pot tentou-o), tudo isto ficou pelo caminho com o fim da URSS e com a conversão da China ao capitalismo. Verdade seja, que uma ou outra coisa, de forma fragmentária ainda subsiste nalguns países socialistas, como Cuba. Mas do programa do Manifesto apenas a educação universal e gratuita sobrou e este objectivo não era apenas o da democratização do ensino, mas sim da estatização do ensino, incluindo um elemento de doutrinação, que nos anos 40 do século passado só podia ser dirigido contra a igreja.
O que sobra de Marx como bandeira do comunismo, do programa do comunismo, não é atractivo para ninguém. O Marx que sobra está cada vez mais mal acompanhado de gente pouco recomendável e que o arrepiaria da cabeça aos pés, como a “quinta espada do marxismo-leninismo”, o camarada Gonzalo do Sendero Luminoso, ou na China, onde aparece como inspirador do sui generis comunismo – capitalismo chinês, ou como, depois de passar pela machete que substituiu a foice na bandeira do MPLA , ficar como inspirador de teorias pouco subtis de apologia da corrupção como mecanismo de construção do Estado em África.

6. Os textos que agora são publicados neste livro foram o ponto de partida para esta longa história e podem surpreender, com excepção do Manifesto Comunista, o leitor moderno que terá dificuldade em compreender até que ponto estas reflexões filosófico-político-económicas um pouco arcanas, típicas da filosofia alemã do século XIX, poderiam ser tão potencialmente subversivas, revolucionárias. O que pode o leitor comum, curioso, amador, actual encontrar nestes textos? Uma parafernália de coisas mortas, como também encontra noutros grandes autores, mas muitas coisas vivas, no sentido em que permanecem problemáticas, suscitam o pensar, porque, mesmo falhado o seu programa político explícito, Marx continua a ser um dos grandes pensadores da história ocidental.
Abrimos o Manifesto Comunista, na verdade o Manifesto do Partido Comunista, embora a palavra “partido” não esteja lá no sentido comum dos dias de hoje, e lá aparece o anúncio do célebre “espectro que assusta a Europa”, o do comunismo e meia dúzia de frases que se tornaram bandeiras, como “proletários de todo o mundo uni-vos” e afirmações sobre como os proletários não têm pátria. Abrimos os Manuscritos de 1844 e aparece o Marx-em-formação entre Hegel e ele próprio, preparando a aparelho conceptual que vai utilizar na sua obra máxima, mas falando mais para além da “economia política” para bem dentro da nossa contemporaneidade, usando Goethe e Shakespeare, nas páginas que dedica ao “poder do dinheiro” para nos mostrar o seu poder de “mediação” da vida toda. Abrimos o Capital e encontramos linha a linha, página a página, um exercício analítico do capitalismo, como sistema do mundo. O Capital , entre o que Marx publicou em vida e o que os seus testamentários publicaram postumamente, aparece como mais um monumento à ordem absoluta do pensamento que tanto fascina os alemães idêntico no seu fôlego teórico a Crítica da Razão Pura de Kant, ao Cosmos de Humboldt, à Economia e Sociedade de Weber e ao Ser e o Tempo de Heidegger.
No Manifesto, pensamento impuro, no Capital pensamento puro, exercício “cientifico” sobre o capitalismo e o seu fim inexorável. E, antes de ambos, uma obra que ficou pelo “manuscrito”, suspeita de estar corrompida pela proximidade ao idealismo hegeliano, mas demonstrativa da construção do pensamento de Marx, mesmo em áreas que ele não veio a desenvolver mas tarde. Em todos os textos o mesmo traço comum: o trabalho teórico de um homem, que desejava substituir a “filosofia” pela “política”, proclamada na sua célebre décima – primeira Tese sobre Feuerbach, onde afirmava que, mais do que “interpretar o mundo”, lhe interessava “muda-lo”.

7. Onde reside a “mudança”, o terreno da revolução, o campo de batalha, é na “luta de classes”. “Toda a história é uma história de luta de classes” é talvez a proclamação essencial do Manifesto Comunista sobre a história. Que a história é uma longa sucessão de conflitos, já os gregos o sabiam, mas a natureza dos conflitos permanecia presa a idiossincrasias pessoais e nacionais, de território, de religião. A consciência da irredutibilidade dos interesses, do antagonismo natural entre grupos, classes, como essencial na fábrica da sociedade, foi um adquirido do marxismo. Tinha um corolário fundamental: não poderia haver sociedades sem conflito e nenhum modelo social e político assente em classes, podia dar origem a uma sociedade perfeita. Só no princípio da humanidade, no comunismo primitivo dos caçadores e recolectores e no fim, no comunismo do futuro, o “espírito” da História conheceria descanso. Pelo meio, nos milhares de anos da história concreta dos homens, a propriedade gerava as classes e as classes lutavam entre si.
Escravos e senhores, nobres e burgueses, tinham constituído os pares da dupla dialéctica entre a “negação” e a “afirmação”. Agora, depois da Revolução Francesa e no meio do ciclo revolucionário dos primeiros cinquenta anos do século XIX, a burguesia era a actual “afirmação”. A “luta de classes” continuava o seu curso, a “toupeira da história” continuava a escavar, e uma nova “negação” revelava-se no interstício das revoluções burguesas, emergindo pouco a pouco da “canalha”, os artesãos, os operários, a nova falange industrial que retirada do mundo rural chegava às minas, às oficinas, ás fábricas da Revolução Industrial.

8. Para o mudar o mundo havia um novo actor “negativo” – o proletariado, os homens que, não tendo nada a perder, tinham tudo a ganhar. Para Marx, essa escolha não correspondia apenas a uma constatação de facto sobre os conflitos do seu tempo, onde os operários emergiam como uma força da “negatividade” da história, mas onde era também possível escolher outras actores, a começar pela própria burguesia que desde a Revolução Francesa, – que tinha cinquenta anos quando Marx se estava a formar ideologicamente, ou seja estava próxima, – se tinha mostrado bem mais eficaz como “revolucionária”.
Marx escolhe o proletariado porque este lhe surge teoricamente como a única classe possível no grande esquema teleológico da História, a manifestação viva da “negação” da sociedade burguesa, a encarnação teórica da relação de exploração que estava no âmago do capitalismo, que era o capitalismo. O proletariado, mais um conceito, uma construção teórica, do que os operários concretos, só poderia ultrapassar a “negação” pela “afirmação”, só poderia existir plenamente recuperando o que lhe era roubado pela relação de exploração, transmutando-se, e o acto dessa transmutação dialéctica era a revolução.

9. O homem de Marx, tanto o seu proletário como o seu burguês, é parte de uma mecânica que os ultrapassa, que o Deus ex-machina da “luta de classes” impulsiona. Para construir este “que nada tem” Marx vai muito para além da economia. Em vários textos, quer de juventude, quer de maturidade, de forma diferente e utilizando conceitos distintos e muitas vezes antagónicos, ele desenvolveu uma teorização de como esses homens seriam desapossados da sua humanidade para perderem tudo e ficarem proletários.
Foi ao tentar construir um modelo dessa des-humanização, que Marx ultrapassou a pura dialéctica política da “luta de classes” para nos fornecer conceitos e ideias que são fundamentais para a análise da contemporaneidade. Exactamente por ter sido hegeliano e usar os utensílios teóricos do hegelianismo, que pretendia “inverter”, para dar uma base material ao homem em vez de “espiritual”, que Marx descreveu na Ideologia Alemã, nos Manuscritos e mais tarde no Capital o mecanismo de desapossamento do “humano”, a “alienação” (Entfremdung) e a “reificação” (Verdinglichung) a que o mundo do capitalismo conduzia. A crítica a esse desapossamento de si, da identidade (pela alienação), e da substituição do ser pelo seu valor como mercadoria, em que o homem se tornava “coisa” (pela reificação), forneciam um princípio de interpretação que se revelava bem mais frutífera no mundo superestrutural das “ideias” e das “mentalidades” do que no da “economia política” do Capital.
A “objectividade fantasmática” das relações entre as mercadorias que era o produto dessa alienação, dessa reificação do homem, fornecia um modelo para descrever a sociedade – espectáculo, para compreender um mundo em que as pessoas se tornam coisas, está presente em muitas interpretações da sociedade de consumo de massas, e no modo como técnicas de manipulação colectivas substituíram o “ópio” que Marx conhecia, a religião, mas com o mesmo efeito.
É sem dúvida a mais interessante contribuição para um discurso da modernidade, que nos chegou pela interpretação quer de Lukács, quer da Escola de Frankfurt, que se apercebeu das implicações destes conceitos não apenas para retratar o homo economicus do capitalismo, mas também o mundo da sociedade de consumo de massas, em particular dos consumos de carácter “espiritual”, do espectáculo, da arte e literatura.

10. Se sairmos do mundo conceptual para a “vida”, uma palavra cara aos comunistas, se fizermos a verificação empírica, a “prática”, que funciona como prova numa teoria que pretende ser “científica”, Marx falhou no proletariado como actor. E falhou porque a relação de exploração, sobre qual assentava o conceito do proletariado como única classe estruturalmente revolucionária, possuidora da “seta da história”, não era a única, bem pelo contrário a construir a mentalidade, a “superestrutura” política dos operários. Na maioria dos casos, na avaliação da “prática”, não é a dialéctica que trai Marx, mas o materialismo, a eliminação teórica das “ideias” como mecanismo de determinação, limitadas apenas ao papel de ruído, de perturbação de uma “acção recíproca” dominada pela infra-estrutura económica.
O problema é que as “ideias”, fossem nacionais, culturais, étnicas ou religiosas, revelaram-se mais eficazes do que a relação de exploração na moldagem da “consciência” do proletário como actor histórico. Quando apareciam os operários concretos apareciam muitas vezes do lado “errado”, do lado da contra-revolução: ao lado de Péron na Argentina, ao lado de Batista em Cuba, ao lado de Imre Nagy na Hungria, contra os tanques soviéticos, ao lado de Lindon B. Johson e Nixon contra os manifestantes hostis à guerra do Vietnam; ao lado de Dubcek na Checoslováquia, de novo contra os tanques soviéticos, ao lado de Lech Walesa e do “Solidariedade” contra o comunismo. Este último exemplo é paradigmático da ironia da história, porque o próprio fim do comunismo foi obra de operários industriais, numa grande concentração fabril, os estaleiros de Gdansk, “controlados” por padres católicos, apostólicos, romanos, de uma das igrejas mais conservadoras da Europa.

11. Por isso, toda a história dos herdeiros do Manifesto Comunista, do comunismo e do socialismo no século XX, é a da procura do proletariado mítico e do encontrar de outros no lugar dele: Lenine encontrou, em vez da Inglaterra e da Alemanha industrial, a Rússia rural; Mao Zedong em vez dos operários de Xangai, encontrou os camponeses, Fidel de Castro encontrou camponeses, estudantes, intelectuais e poucos, muito poucos operários
Muito do esforço do marxismo heterodoxo no século XX foi encontrar um ersatz para o proletariado que permitisse manter o esquema da luta de classes intacto, transportando a interpretação marxista da “exploração” para fora da fábrica e do proletariado industrial. Foi o que os chineses fizeram, somando ao proletariado mundial, o campesinato como força motora do comunismo, assim como as massas rebeldes do que se chamou “terceiro mundo”, foi o que Marcuse e outros teóricos do Maio 68, fizeram com os estudantes, ou os marxistas e trotsquistas ingleses da New Left Review, procurando nos novos trabalhadores dos serviços, professores, pessoal dos serviços de saúde, esse mesmo pathos revolucionário que a “classe operária” parecia ter deixado de ter.
Alguma intelectualização da teoria de Marx veio desta procura, que para além relação de exploração fabril, e da apropriação da mais valia do trabalho pela burguesia, construía agora novas formas de “exploração”, usando quer a psicanálise freudiana, quer histórias de género, quer modelos sociológicos e antropológicos para encontrar nos “negros”, nos “índios”, nas “mulheres”, nos “homossexuais”, o elo frágil do capitalismo, aquele que, uma vez quebrado, gera a revolução. Eles seriam as “novas classes revolucionárias”, que substituiriam as antigas, que se tinham deixado “aristocratizar”, “social-democratizar”, “aburguesar”. A abundância dos termos mostra a dimensão do fenómeno.

12. O problema do actor que não parecia ter grande vontade de representar o seu papel era apenas mais uma manifestação de um problema maior na teorização marxista, a dependência da revolução da “ciência” e não da “vontade”. A essência do “muda-lo”, na Tese sobre Feuerbach, não era a vontade revolucionária, algo que Marx, Engels e Lenine combateram como típico do revolucionarismo burguês. Para eles, Marx em particular, a “vontade” contava pouco porque as teses sobre a “autodestruição” do capitalismo, que constituem o cerne político do Capital, eram matéria de ciência. Eram tão ciência como a teoria da gravitação de Newton, ou a selecção natural de Darwin, e no ambiente de optimismo cientifico, de crença na tecnologia, na admiração da capacidade da ciência de, não só “interpretar o mundo” mas de fornecer as técnicas “para o mudar”, as teses marxistas sobre o capitalismo e a sua inevitável destruição tinham a inevitabilidade da maçã a cair para o chão. Engels, o primeiro intérprete autorizado e co-autor, tentou sempre fazer essa fusão entre o adquirido da ciência e o do marxismo, uma tradição que continuou até aos nossos dias, mesmo em marxismos desviantes da ortodoxia soviética. O trotsquista Ernest Mandel escreveu, por exemplo, um tratado de economia em que o cânone marxista clássico se entrelaçava com o que de mais moderno havia na investigação na antropologia, na sociologia, na filosofia, na economia política, na demografia, nas ciências sociais e humanas, mas também nas ciências físico-naturais. Para Marx, o seu livro o Capital era o equivalente para a economia e para a sociedade dos Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, para a natureza.

13. Mas, quando se analisa de novo a história do marxismo concreto, do marxismo dos homens que tentaram levar à prática o ditame da décima primeira tese sobre Feuerbach, a “vontade” revolucionária, que Marx e Lenine tinham ridicularizado, mostrou-se sempre mais eficaz do que a “ciência do proletariado”. Um exemplo extremo encontra-se nas Citações de Mao Zedong, o “livro vermelho” onde se encontra a célebre fábula chinesa, de que Mao gostava, e que serviu para um dos seus mais conhecidos textos, Como Yukong Moveu as Montanhas. O “louco” e velho camponês que todos os dias, ele mais os seus descendentes, escavam um pouco a montanha que lhes tapa o Sol, dirigia-se como fábula moral a um “marxismo camponês”, menos dominado pelo tempo urbano proletário dos grande relógios urbanos e pela “pressa” citadina e mais conforme com o tempo lento e cíclico das estações, onde nada parece mudar. É um tempo não dialéctico, no qual só se pode impor uma teleologia através de sinais, sinais subtis de mudança, que exigem força de vontade. Mas o que transpira para além da vulgata leninista sinofilizada, ou dos conselhos de puro bom senso, é um apelo constante à vontade, à constância da vontade, à perseverança da vontade, se quisermos, à fé. Muito do guerrilheirismo latino-americano, embrenhado em muitos casos tanto no marxismo como no catolicismo progressista, contém igualmente esse traço de vontade de vis revolucionária, agora envolvida em teorias messiânicas sobre a história que unem Cristo e o “Che”.

14. Bem vistas as coisas, tudo correu mal a Marx. Nem o proletariado se comportou como era suposto, bem pelo contrário, nem as revoluções foram sucedidas, ou foram outra coisa muito diferente, nem o “espectro” do comunismo passou de fantasma a entidade corpórea, nem o implacável programa “científico” do Capital deu origem à “autodestruição” do capitalismo. Mas também, bem vistas as coisas, nenhum programa teórico dos filósofos desta colecção poderia ter passado a prova da “prática” que Marx impôs a si próprio. Valha a verdade que muitos estavam a outro nível de intelecção da realidade, mas nem todos. Por exemplo, Platão, não estava, Séneca não estava, Maquiavel não estava. E se todos eles podem ser interpretados de forma dilemática, pela “prática”, nenhum tinha a vastidão de um pensamento personificado num nome que atravessara a terra durante mais de cem anos, prometendo mudar tudo e mudando muita coisa, em particular muitos milhares de vidas que, quase sempre infelizmente, conheceram o “marxismo”. Desse ponto de vista, o impacto de Marx só é comparável ao dos fundadores de grandes religiões, só que com a diferença que esta religião laica tinha uma tão grande explíicitude, manifestava um tão alto “orgulho” teórico, colocava tão alta a fasquia da sua verificação e “verdade”, que foi morta nessa “prática” pelo “ruído do mundo”, pela complexidade das coisas, pela emergência de fenómenos que ajudou a “prever”, mas que não conseguia “compreender” em toda a sua plenitude.
Não é que Marx e as suas ideias não continuem a ser um instrumento heurístico, só que “interpretar o mundo” não era propriamente o seu objectivo.

3 pensamentos sobre “

  1. Dizia Marx: a teoria (marxista) só se transforma numa força material quando penetra nas massas. E Lénine: Por si só, o proletariado nunca alcança a visão do seu próprio papel histórico, e não ultrapassa, na sua luta, as reivindicações de melhores condições de vida dentro do quadro capitalista (trade-unionismo). Para que se torne revolucionário, para que se invista no seu próprio papel histórico, é preciso que o proletariado assimile a teoria (marxista). Mas esta é gerada na classe que detém o conhecimento científico, a burguesia! É, portanto, necessário que os intelectuais burgueses que desejam a revolução levem a teoria ao proletariado. É esse o papel do partido (marxista-leninista). Ora, a meu ver, existe nesta visão um claro paralelismo com o papel atribuído à Igreja pelo cristianismo. E particularmente interessante é como o intelectual marxista vê a sua vontade revolucionária individual como um fruto ela própria da luta de classes que pretende promover – tal como o cristão vê a sua fé não como uma opção individual mas como um fruto da “graça”…

  2. Depois da derrocada do “socialismo real”, uma vez e outra Marx regressa, quase sempre como uma moda.
    Faz sentido tentar perceber o que se mantém válido e o que está ultrapassado nas teses de Marx. Mas não faz muito sentido discutir Marx na base dos “erros de previsão”, tratando-o como um mago cujo objectivo fosse adivinhar o futuro. A única coisa que ele previu foi que os homens lutariam contra a exploração, como sempre fizeram, mas nos moldes próprios da nova era industrial cuja adolescência ele presenciou. Nessa previsão acertou em cheio e, se o resultado obtido não nos satizfaz, não é a Marx que devemos culpar.
    O nó górdio do marxismo está na relação, mal conseguida, entre a noção de “modo de produção” e a luta política e partidária pelo acesso ao poder. Na esquerda marxista é comum tomar-se como bastante a luta política e sindical do dia a dia sem curar de compreender e integrar o ciclo mais longo da transição para um novo paradigma de organização social e económica. Dessa forma legitima-se, sem ter consciência disso, a famosa tese de Thatcher “there is no alternative”.
    Sem dúvia que “a história de toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes”, no sentido em que esse combate perpassa toda a evolução da humanidade. Mas convém perceber em que circunstâncias e em que condições a luta de classes deixa de ser uma mera questão de auto-defesa e se converte no motor da transição profunda nas formas de produzir e distribuir em sociedade.
    Esta falta de clareza estende-se também à questão de saber qual é o papel e quais são as limitações do voluntarismo na transição do modo de produção. Com esta questão prende-se uma outra que é a de saber quando e onde se pode, ou deve, exercer tal voluntarismo. Seja qual for, em abstracto, a eficácia do voluntarismo ela efectivar-se-á em qualquer momento e em qualquer lugar ou estes têm que ser ponderados e escolhidos de acordo com determinados critérios ?

    O primeiro a cometer o erro de escamotear as condições prévias para o desabrochar de um novo modo de produção foi curiosamente o próprio Marx. Em 1850 convenceu-se de que o capitalismo estava a chegar ao fim.Eis como em 1895 Engels conta o sucedido na introdução a “As lutas de classes em França de 1848 a 1850”:
    “A nós e a todos quantos pensávamos de modo semelhante a história não deu razão. Mostrou claramente que nessa altura o nível de desenvolvimento económico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista. Demonstrou isto por meio da revolução económica que alastrava por todo o continente desde 1848 e fizera a grande industria ganhar pela primeira vez foros de cidadania em França, na Áustria, na Hungria, na Polónia e ultimamente na Rússia, e, além disso, tornara a Alemanha num país industrial de primeira categoria. E tudo isto sobre fundamentos capitalistas que, em 1848, ainda tinham grande capacidade de expansão”.
    (Marx e Engels – Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 195).

    Vejamos como Marx formalizou no prefácio de “Para a crítica da Economia Política”, 1859, os ensinamentos retirados do erro cometido:
    “Uma formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as suas forças produtivas para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre que a própria tarefa só aparece aonde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução”
    (Marx e Engels, Obras Escolhidas, Trad. Portuguesa, Edições Avante, 1982, Tomo I, pag. 531).

    É neste ponto que, quanto a mim, devemos retomar Marx.

  3. António Monteiro

    Talvez a grande força do Marxismo, paradoxalmente, tambem tenha sido a sua grande fraqueza: falo do modo como a herança de Marx tenha sido encarada pelos seus defensores. Como poucas, esta doutrina foi incorporada, defendida e colocada em campos muito próximos daqueles que as religiões ocupam.
    Em certas ocasiões da história, o discurso dos seus defensores, falando de política, usaram processos da fé, tiveram os seus deuses, os seus mártires, os seus missionários, as suas igrejas, as suas verdades imutáveis, os seus pecados, os seus paraísos e os seus livros sagrados.
    Não sei se Jesus existiu, nem tenho certeza que mensagem eventualmente terá deixado.
    Mas de certeza que não quis ser a imagem que hoje é. Será que poderemos algum dia analisar o marxismo, separando-o daquilo que tentaram fazer com ele?
    Espero que sim, gostaria que sim, mas não sei se algum dia o faremos.

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