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Publica-se a seguir a conclusão de um trabalho de investigação, no âmbito de um seminário do mestrado de História Contemporânea em Coimbra, de autoria de Natália Santos, intitulado “Catarina Eufémia: (Des) Montagem de um Mito”.

“Catarina Eufémia: (Des) Montagem de um Mito” – Conclusão

Morta em 1954, imortalizada desde então, Catarina Eufémia, o mito, torna-se o símbolo de um país em luta, de classes sociais que reivindicam o fim da ditadura salazarista-marcelista, em todas as suas implicações. Ganhando dimensões de fenómeno internacional, com a publicação de um artigo sobre si na revista Mulher Soviética (1) , em torno da sua figura o Partido Comunista Português (2) tenta, ao longo dos anos, promover a coesão, a união, a identificação entre as massas camponesas, em particular, e entre as classes trabalhadoras, numa dimensão mais lata, apresentando-a como paradigma de combate à repressão, à exploração económica e ao atropelamento dos direitos dos trabalhadores. ”Exemplo que não esquece e frutifica” (3) ; é-o a camponesa recordada, lembrada e comemorada por comunistas e anónimos que se deslocam a Baleizão, todos os anos, numa autêntica romaria, criando um cenário onde vários conceitos participam e permitem compreender a finalidade de tal iniciativa, de tal ritual. De facto, pensando nas homenagens a Catarina de Baleizão, eis que surgem realidades associadas, como as de tradição, passado, presente, futuro, comemoração, culto ou, mesmo, religião cívica. Neste quadro, todas estas noções se conjugam, participando na construção do mito político tão prezado pelos comunistas, especialmente após 1974.

Assim que a jovem camponesa perece, o PCP procura apropriar-se da sua estória, escrita por linhas de tragédia e infelicidade (4) , fazendo (frequentemente) sobrepor à Catarina-mãe e à Catarina-mulher a Catarina-camarada, a Catarina-trabalhadora e a Catarina-comunista. A partir de então, as visitas à sua campa sucedem-se anualmente, ganhando estatuto de ritual, acompanhadas de comícios, onde, quase sem excepção, o secretário-geral do PCP tem presença obrigatória. Entre o partido, que promove tais encontros, e a multidão que se forma para neles participar, Catarina Eufémia e os símbolos que consigo arrasta (as bandeiras vermelhas, os cravos da revolução…) fazem a ponte entre ambas as partes, desencadeando, quase de imediato, um processo colectivo de identificação entre estas. Desse modo, as grandes causas do Partido Comunista Português tornam-se, natural e consequentemente, as do proletariado. A democracia, a liberdade, a reforma agrária, o poder das massas trabalhadoras na luta pelos seus direitos constituem-se como palavras de ordem comuns aos celebrantes de Catarina Eufémia, tendo nela o símbolo máximo e superior de dedicação aos ideais referidos. Num misto de apropriação de termos religiosos (como o de “mártir”) e de uso de uma linguagem fortemente política, onde uma visão tripla de presente/passado/futuro é posta em relevo, assim têm lugar os comícios de Baleizão dirigidos ao povo, destinados ao povo, feitos a pensar no povo e nos interesses partidários… e não somente em Catarina.

Embora Catarina Eufémia seja, afinal, mais um pretexto para fazer aproximar o comunismo das classes mais desfavorecidas, dirigindo-se em especial o PCP àquela de que a camponesa era oriunda, a verdade é que ela permite passar a imagem de um Alentejo fortemente comunizante ou comunista; para tal, promove as comemorações anuais do aniversário da sua morte e dando-lhe grande relevância na imprensa, a partir de 1974, variando, todavia, consoante o momento político vivido em Portugal nessa altura, como já verificámos atrás.
Além de referida pela dimensão meramente política que Catarina Eufémia adquiriu pelo Partido Comunista, a jovem camponesa assassinada fica, no imaginário social português, como mãe e mulher. Em romances, peças de teatro, poemas (5) , imagens e canções, aquela dupla condição é invocada, numa combinação de bela mulher e heroína trágica, numa conjugação de tristeza pela sua prematura morte e esperança na justiça futura. Acima de tudo, fica a imagem de uma mulher, uma jovem mulher, mãe e companheira, a quem o Fado foi injusto, ceifando-lha a vida demasiado cedo e em circunstâncias inaceitáveis. Acima de tudo, fica, em sua memória, uma das canções simbólicas do nascer da Liberdade em Portugal, baseada num poema de Vicente Campinas e interpretada por José Afonso:

“Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer
Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti
Aquela andorinha negra
Bate as asas p’ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar” (6)

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(1) Certamente sob iniciativa do PCP.

(2) A par deste partido, um outro, a UDP, também reivindicou Catarina Eufémia como sua militante. Deu, aliás, origem a um conflito entre ambos os partidos que se radicalizou “no dia 23 de Maio de 1976, quando (…) foi destruído um pequeno monumento à sua memória, erigido em Baleizão por iniciativa dos simpatizantes da U.D.P”. Vide A Morte de Catarina Eufémia. A Grande Dúvida de Um Grande Drama, Beja, Associação de Municípios do Distrito, 1974, p. 58

(3) Avante, 17 de Maio de 1974

(4) Devido a vários factos que envolvem a sua imagem: a sua juventude (teria cerca de 26 anos quando morreu); os filhos e o viúvo que deixou; as circunstâncias da sua morte…

(5) Para uma leitura das principais e mais conhecidas composições poéticas dedicadas a Catarina Eufémia, vide 50 Anos depois da Morte. Catarina de Baleizão…

(6) 50 Anos depois da Morte. Catarina de Baleizão…, p. 54

34 pensamentos sobre “

  1. Entre os mitos, acerca de Catarina Eufémia, contam-se o facto de ela estar grávida, no dia da sua morte, o que foi desmentido por um dos médicos que procedeu à sua autópsia. Outro, foi o que se prendeu com o facto de ela ter sido assassinado por trás, pelo tentente Carrajola
    Irene Pimentel

  2. António Cardoso

    Acho bastante lamentável o texto. Os mártires de todas as causas são obviamente mitificados e utilizados para o progresso das mesmas. Lembremo-nos do Marat e do belo quadro de David. Ora no texto, vem-se culpar o PCP de ter construído um mito e de se ter dele apropriado. Fez muito bem, pois foi a única organização que apoiou as lutas dos camponeses, que viviam na maior miséria. Ou seja, o PCP mitificou o fascismo e a GNR assassinou e para esta senhora o que é grave é a mitificação do PCP. É a banalização da barbaridade fascista. O Holocausto também tem mitos e imprecisões, faça-se um trabalho sobre os mitos do Holocausto. Estou à vontade para fazer este comentário, porque nunca foi membro, nem simpatizante do PCP e até lhe senti a mão pesada nos idos de 1975.

  3. Preocupa-me a forma ligeira como uma realidade objectiva – o assassinato de Catarina Eufémia sob os tiros da GNR – é apresentada pela autora da tese. Estas elaborações em torno dos «mitos» correm o risco de fazer o papel de obscurecer essa realidade objectiva – um regime que reprimia, através de várias forças, aqueles que contra ele se erguiam ou que, simplesmente, clamavam por pão, salário, redução do horário de trabalho nos campos. Agrade ou não à autora da tese, e como também Pacheco Pereira demonstrou, num tempo longo foi o PCP que encabeçou essas lutas no sul. Espanta-me, Irene, que alinhes em questões de lana caprina quando, pelo lido, o carácter da tese parece reenviar num perigoso sentido de revisão – parece que, no limite, não aconteceu nada, tudo é do domínio do mito, mais tarde actualizado em sucessivos rituais periódicos. Acaso merece assim tanta confiança um relatório de um médico legista sob um regime repressivo? E será isso o fundamental? Não será, antes, que uma mulher assalariada rural alentejana foi assassinada?

  4. vanessa almeida

    «Embora Catarina Eufémia seja, afinal, mais um pretexto para fazer aproximar o comunismo das classes mais desfavorecidas, dirigindo-se em especial o PCP àquela de que a camponesa era oriunda, a verdade é que ela permite passar a imagem de um Alentejo fortemente comunizante ou comunista».
    A minha primeira pergunta é : e daí?Concordo em absoluto com o comentário da Paula Godinho, quanto à informação acrescida pela Irene Pimentel, já não é propriamente novidade, há muito que vem sendo afirmada. Todavia, não invalida o facto de uma mulher indefesa ter sido morta por um GNR, pois não?Afinal, o que é mais importante?

  5. Cristina Nogueira

    Como vários autores referem, entre eles Paula Godinho e Pacheco Pereira, durante o Estado Novo foi ao PCP que coube o papel de organizar e dinamizar as lutas no sul do país, pela redução do horário de trabalho, pelo pão, etc., por isso o PCP não necessitou que Catarina Eufémia fosse o pretexto para aproximar o comunismo das classes mais desfavorecidas. Nesse tempo o PCP estava lá, tão próximo das classes desfavorecidas que se confundia com elas. Catarina Eufémia é um mito, como tantos outros, mas isso não invalida que tenha sido de facto assassinada pela GNR quando clamava por pão, nem que fosse militante do PCP. Para quem tem dúvidas aconselho a leitura de uma entrevista com uma colega de trabalho de Catarina publicada em 50 Anos depois da Morte. Catarina de Baleizão.
    Concordo com o comentário de Paula Godinho e parece-me que sempre que se estuda a subjectividade não se pode descurar a realidade objectiva.

  6. Essa da importância….
    É histórico e objectivo que uma camponesa alentejana, Catarina Eufémia, tenha sido assassinada pelo tenente Carrajola, da GNR, quando, com outros companheiros, participava numa luta. Até os jornais da época – censurados- o testemunham.
    Segundo fontes – neste caso,o médico legista, acompanhado de outro médico legista – é histórico e objectivo que – peço desculpa, Paula, mas, para se “fazer história”, depende-se de fontes – Catarina Eufémia não estava grávida e foi morta por trás. Este último “pormenor” acrescenta muito ao carácter violento da polícia do Estado Novo, pois que foi morta, indefesa, sem estar a agredir ninguém (como afirmou Carrajola). Quanto ao acrescento de que Catarina estaria grávida,é um ponto importante para a análise que se possa fazer do carácter ideológico do mito. Mito esse – ao qual se acrescenta, muito provavelemente, o de que Catarina Eufémia fosse militante do PCP, quando na realidade não o era – que também pode e deve ser analisado historicamente.
    E, nisso, alinho.
    Irene Pimentel

  7. afonso salgueiro

    Factos:
    – Catarina não estava grávida
    – Catarina não era militante comunista
    Análise subjectiva:
    – o disparo teve o objectivo de matar, ou foi um tiro fortuito para a “multidão” da qual resultou uma morte?
    Quanto à análise histórica que resulta dos poemas do Dr. José Afonso basta pensarmos nos poemas que dedicou a Maria da Fonte, uma revolta que hoje chamaríamos de direita. O empenho dos pequenos proprietários rurais de então em não pagarem impostos.

  8. Uma investigadora não pode dizer que a UDP reivindicou Catarina Eufémia como sua militante. A UDP não existia antes de 25 de Abril. O PC(R), “vanguarda comunista” da “frente popular” UDP considerava-se o herdeiro do “verdadeiro” PCP dos anos 50 e como tal julgava-se com direito a reivindicar a memória de Catarina, não reconhecendo esse direito aos “revisionistas” do «P”C”P». Em determinada altura, a família de Catarina apoiou as posições do PC(R).

  9. Sr Pedro Salgueiro,

    Factos:
    – Os médicos da altura não viviam em democracia, não se podiam atrever a dar uma má imagem do regime. (talvez nunca se venha a saber a verdade);
    – Também não me parece que Catarina fosse “militante” comunista. O que não invalida que fosse alguém revoltado contra a injustiça do regime, facto que, na época, equivalia a ser comunista…

    Análise subjectiva:
    – Tiro “fortuito para a multidão” (???), normalmente atira-se “ao ar”, a menos que se pretenda realmente acertar em alguém. Muito subjectivo mesmo…

    Quanto à análise histórica, parece-me que a conclusão mais adequada é a de que a revolta era “contra o regime de ditadura despótica” que, na altura, por circunstâncias históricas, era de direita. É isso que contava na altura: revolta contra o regime instaurado = comunismo, nada mais; Os pequenos proprietários da altura ou pagavam os impostos ou pagavam aos camponeses que viviam na miséria.
    É uma outra discussão que, de qualquer forma, não serve para desculpabilizar o regime homicída de então.

  10. Afonso Salgueiro

    Em História muitas vezes o que parece “não é”. No “post” acima referi-me a duas coisas distintas a morte de Catarina em 1954 e aquilo que ficou conhecido como revolta de Maria da Fonte em 1846, são dois tempos históricos completamente distintos. A função dos historiadores não é encontrar culpados ou inocentes. É analisar com a “utensilagem” que têm ao seu alcance não o passado, mas o presente acontecido, aquilo que de facto aconteceu naquele presente (agora distante) e quais as circunstâncias que o motivaram.

  11. Muito se tem escrito sobre Catarina Eufémia.

    Muito já li também.

    Factos são factos.

    E, a lógica da verdade nunca se saberá concretamente.

    Mas, também nunca se saberão, outros factos ocorridos noutros casos.

    Mas, contudo não podemos esquecer a história de um Povo.

    Não podemos, de alguma forma, deixar cair no esquecimento, factos e pessoas que fizeram parte integrante da nossa cultura e dos factos ocorridos.

    Nunca nos deveremos envergonhar da nossa história. Porque a história de um País, ajuda a crescer esse País e a corrigir os erros que foram feitos em determinadas épocas.

    A todos desejo uma FELIZ PÁSCOA

    Abraço 😉

    (Cheguei aqui através do http://conversasdexaxa3.blogs.sapo.pt/ )

  12. Sobre Catarina Eufémia leia-se o post de 20/04/04 no O Gin Tónico (um bom Blog, infelizmente parado há alguns meses), aqui:

    http://ogintonico.weblog.com.pt/arquivo/2004/05/catarina_eufemi.html

  13. Quem morreu primeiro: Catarina ou o mito?

  14. “É analisar com a ‘utensilagem’ que têm ao seu alcance não o passado, mas o presente acontecido, aquilo que de facto aconteceu naquele presente (agora distante) e quais as circunstâncias que o motivaram.”

    Perfeitamente de acordo: O regime era ditatorial e homicida, em qualquer circunstância.

  15. … que o colocasse em causa.

  16. afonso salgueiro

    Sejamos, intelectualmente honestos na discussão. Como pode um “regime ditatorial e homicida em qualquer circunstância” produzir personalidades como Aristides Sousa Mendes.

  17. Para o sr. Afonso Salgueiro:
    O “regime ditatorial e homicida em qualquer circunstância” votou à miséria Aristides Sousa Mendes. Daí não percebo a sua ironia.

  18. António C. Santos

    “Sejamos intelectualmente honestos”, se conseguirmos dizer isto sem nos rirmos. O regime, segundo o sr. Salgueiro, não era ditatorial, nem homicida em todas as circunstâncias, só porque Aristides S. Mendes existiu no seu seio? Como pôde o regime soviético produzir personalidades como Mikhail Gorbatchev? Sejamos intelectualmente honestos e passemos esta parte da discussão do mito Catarina Eufêmia para o blog do Gato Fedorento, certo?

  19. António Cardoso

    Analisar este tema, desligando-o da movimentação social e política em que se inseriu é profundamente errado. Tudo se passa como se o PCP, um grupo de pessoas alheias à luta dos trabalhadores rurais alentejanos, tivesse subitamente desembarcado no Alentejo, inventando uma série de patranhas, que aqueles pobers de espírito engoliram. Lamento, mas esta foi sempre a forma como o regime fascista analisou as lutas, que contra ele se levantaram. Agitadores vindos de fora criam distúrbios, que provocam vítimas e vá de os utilizar na propaganda, invocando toda a espécie de mentiras. Faz-me pena que visões tão rasteiras mereçam acolhimento universitário. Mais preocupado fico quando ouço uma investigadora fazer fé no relatório de uma autópsia de uma vítima do fascismo, por ter sido feito por médicos legistas. Vá ao arquivo da PIDE e lá verá relatórios desses acerca de presos, mortos na tortura, em que os tais legistas lhes descobrem as mais variadas doenças congénitas para escamotear a verdadeira causa da morte. Que historiografia é esta em que, num caso como este, a palavra de um médico ou de dois,trabalhando num regime fascista, sob a dependência de autoridades fascistas, eles próprios eventualmente adeptos do regime, é à partida um dado sério e indesmentível? Será sério e digno falar de um crime desta natureza, como se fosse um mero detalhe, para fazer o libelo acusatório das terríveis “mentiras” do PCP, cujos militantes deram a cara e o coiro pela defesa daqueles trabalhadores, que viviam na maior miséria? A quem serve esta “objectividade” histórica”?

  20. Lourenço de Almeida

    Se a Catarina Eufémia era uma pobre alentejana, parece-me idiota pensar que tenha havido uma ordem do regime para a matar, especificamente a ela. Se era uma activista do PCP, uma agitadora profissional, cai por terra o mito da “esposa, mãe e mártir”. Lutar contra uma ditadura não é o mesmo que lutar pela liberdade. Em muitos casos, é apenas lutar por outra ditadura. Ou Catarina Eufémia era do PCP e viva ou morta, serviu a causa de uma ditadura muito mais feroz e duradoura que aquela que combateu, ou foi uma pobre mulher que foi esmagada enquanto lutava por melhores condições de vida, e não uma heroina comunista.

  21. Investigadores sérios como Margarida Fernandes -antropóloga que se doutorou na universidade de Kent, Cantembúria, com uma tese centrada em Baleizão – ou João Madeira, historiador que há muito se dedica ao estudo do Partido Comunista, abordaram com o rigor e o conhecimento que muito labor no trabalho de campo antropológico e na consulta de fontes históricas permite, o caso de Catarina Eufémia. Só resolvi intervir neste tema porque trabalhos com uma conclusão como aquela que deu origem a este debate representam o lado menos sério que alguma investigação assume. Não são inocentes e, como se demonstrou nesta polémica, visam objectivos que, por enquanto, encapotam. Ao longo do debate – de que estive ausente por me encontrar em trabalho de campo, num sítio sem net nem telemóvel – a par de gente séria, surge outra capciosa. Não é neste grupo que te ponho, Irene, como investigadora com boas provas dadas, só me parece de assinalar que foste ingénua ao corroborar sem reflectir sobre o âmbito do trabalho apresentado em Coimbra. Já Lourenço de Almeida, sem hesitações, nos dá conta da sua disponibilidade para aceitar o assassinato de Catarina, caso esta fosse militante comunista – e a sua intervenção é feita sem qualquer rebuço. É contra este tipo de fenómenos de rescrição que reagi e reajo, reafirmando que, ainda que custe a alguns, a realidade foi uma e só uma: Catarina Eufémia foi assassinada por representantes do regime salazarista. Tentem, com fontes e seriedade, desmentir isto.

  22. Chamo a atenção para todos aqueles que estão a par desta questão e a seguem para algo que me parece claro: ainda ninguém entendeu verdadeiramente que esta matéria – Catarina Eufémia como mito – pode e deve ser analisado sob várias perspectivas. Podemos e devemos entendê-la como mãe, esposa e cidadã / trabalhadora que perdeu a vida na luta pelos seus direitos (assassinada por um tenente da GNR ou, dito de outro modo, pelas forças do regime fascista). Tal não deve ser esquecido e muito menos apagado, porque de matéria histórica se trata. Mas pergunto: o que há de errado (se partindo do princípio de que, de facto, a estória de Catarina deu origem à construção de uma imagem mitológica da mesma) no facto de uma investigadora ter analisado o “fenómeno” de Catarina como mito numa investigação em que, pelo que nos é dado a conhecer, se propôs desmontar e compreender esse mesmo mito?

  23. Por isso mesmo perguntei (uns comentários atrás) quem teria morrido primeiro: Catarina ou o mito? Parece claro ao longo desta discussão que o mito já morreu, mas que Catarina ainda por está enterrar. Ou seja, a textura mitológica está exangue ( por via do emparedamento de quem a utilizou), mas a mulher, essa, ainda tem carne que suscite a discussão, ainda que sob a forma de autópsia académica ( se era mãe ou funcionaria, cidadã empenhada ou mera transeunte, etc,etc)

  24. Se assim é, se assim for, será assim tão grave ou historicamente errado discutir a dimensão mitológica da Catarina?

  25. Claro que não, Miguel. O que quis dizer foi que a aura mitológica não é toda igual. Existem mitos que convivem bem com o envelhecimento de Kronos, outros empalidecem, são mais circunstanciais. O tempo mitológico de Catarina já passou, a prova é a sua discussão num sítio tão especializado como este. Amália, noutro nível, mas não tão distante quanto possa parecer, ainda conjuga a mitificação com o tempo dos mitificadores.
    Por isso me parece que Catarina já está em autópsia pós-mitológica: análises académicas, rixas de historiadores, coisas evidentemente importantes e interessantíssimas, mas que por isso mesmo convivem mal com as reacções emocionais de alguns, ainda agarrados à mortalha simbólica do mito.

  26. luisa tiago de oliveira

    Em História, há factos e interpretações. A História faz-se necessariamente com (perguntas às) fontes, devidamente criticadas e cruzadas.
    Quantos destes comentários são apenas bocas… Como, por exemplo, o que remete para José Afonso (veja-se o inocente e cuidadoso “DR” antes de josé afonso) e os comentários que deambulam pelas ditaduras (matéria que não está em causa) e os que contrpõe o mito morto de Catarina ao mito vivo da Amália… Onde estamos nós? Para onde vamos? Quem se atreveria a mandar tantas bbocas em Física Quântica? E em Medicima, par falar de 2 saberes bem diferentes… Não estou a ver as mesmas bocas sobre o tratatamento ao cancro do pulmão: quem diria eu acho que XXX não é terapêutica sem fundamentar, o medicamento YYY é que é eficaz sem apresentar elementos de “prova”?

    Sobre Catarina-realidade e mito (ambos importantes de analisar e entender), há trabalhos sérios – como o de João Madeira.
    Sobre o papel do PCP no Alentejo antes do 25 de Abril, também há História séria – como o do mesmo João Madeira, da Paula Godinho, do Pacheco Pereira, apesar da diversidada das leituras e enfoques. Quanto ao trabalho de Natália Santos, não o conheço.

    Mas onde é que os comentários já vão…!

  27. luisa tiago de oliveira

    E ainda…

    Porquê esta necessidade e esta vontade de JULGAR Catarina, o PCP e as “ditaduras ainda mais ferozes” que ou defenderia ou, pelo mito, teria ajudado a defender?

    Que significa tudo isto

  28. Desculpem mas ler os vossos comentários e perder a vontade de analizar a Historia .
    Catarina foi um mito que teve uma epoca e que tal como outras figuras publicas ligadas ao PCP foram utilizadas ou abandonadas conforme a sua formação intelectual.
    Não se pode falar de Catarina sem falar do seu principal estratega Alvaro Cunhal.

  29. Factos? Mito? Autópsia de quem? Tese de quê de quem?

    Uma pessoa foi assassinada, uma mulher, por um Tenente da GNR, baleada por arma de guerra, pelas costas.

    Desmontagem do quê? Qual mito?

    O PCP fez o quê?
    As pessoas fazem o que têm a fazer em determinados momentos.
    O PCP foi praticamente o único grupo de pessoas que fez alguma coisa pela liberdade, num país onde o silêncio cúmplice continua a falar mais alto.

    A menina da tese faça mas é outras coisas para perceber que a vida é mais complexa que as teses.

  30. Estimados Concidadãos,

    Repeitem-se os factos e não se confundam as responsabilidades. Catarina Eufémia era uma pobre camponesa que lutava por objectivos simples e justos, independentemente de pertencer ou não a um Partido que defendia um outro tipo de Ditadura, como Sistema Político.

    Os intelectuais, sobretudo os mais cosmopolitas, do PCP e de outras organizações congéneres na ideologia, esses sim, podem e devem ser responsabilizados pela longa cobertura que deram à grande ilusão comunista supostamente encarnada na União Soviética. Mas nunca os humildes trabalhadores, sobretudo os operários e os camponeses, que apenas pretendiam sobreviver um pouco melhor, aliviando a exploração que sobre eles se abatia.

    Quando um fraco está debaixo de uma forte opressão, rápido busca qualquer sustento, qualquer ajuda que possa vislumbrar. Esta diferença de situação parece-me fundamental perceber.

    Quanto ao mito, criado em redor da Catarina Eufémia, não me causa espanto e até lhe reconheço utilidade, para exorcizar um tempo nefasto que queremos nunca mais volte. O nosso hoje grande Fernando Pessoa, obscuro em vida, e que ainda conheceu o peso de alguns desses anos de chumbo, não nos advertiu que o «Mito é o nada que é tudo» ? Como aliás já os Gregos nos tinham demonstrado.

    O importante é o uso que deles, dos Mitos, fazemos e se eles contribuem ou não para o avanço das Empresas a que nos entregamos, salvaguardado que esteja o respeito de regras e normas do são juízo e do senso comum, para não cairmos no domínio da fantasia.

    No mais, conservemos a memória dos factos históricos e apuremos as diferentes responsabilidades dos intervenientes : uma pobre camponesa foi morta pela GNR, quando reivindicava melhores condições de trabalho, num tempo em que praticamente nenhuns direitos eram concedidos aos trabalhadores em Portugal, menos ainda aos camponeses. Isto nenhuma esforçada tese académica, nenhum raciocínio, por mais apetrechado, conseguirão alterar.

  31. Hesitei bastante antes de “postar” este comentário, pensando se não seria de alguma forma irresponsável estar a tecer comentários a uma tese inteira baseados apenas na leitura de uma par de páginas. Depois apercebi-me q na sua maioria (totalidade?), todos os contribuintes para o debate fizeram o mesmo. Deste modo, fica o aviso à navegação: este post é uma reação às reacções, mais do q uma reacção ao conteúdo substantivo da tese (q desconheço, e não pude ainda obter, visto encontrar-me no Reino Unido).

    Parece-me que há dois pontos a salientar:

    1) Em primeiro lugar, uma franca incompreensão da epistemologia da tese, e das suas conclusões. Pelo que li, a tese não se propõe a _negar_ factos históricos suportados pelas fontes: Catarina Eufémia, trabalhadora rural no Sul, foi morta em i954, atingida por trás pelos disparos de um militar da GNR. O que a tese (me parece) pretender é analisar do ponto de vista discursivo e crítico a forma como esses factos foram interpretados, discursivamente (re)construídos, e utilizados por uma variedade de actores socio-politicos (PCP, por exemplo).

    Parece-me inteiramente legítimo – e mesmo particularmente útil – do ponto de vista científico que se proceda a esse tipo de análise. O fechamento epistémico de certos “factos”, ou interpretações deles, e a sua cristalização em iconografias ou discursos dominantes (únicos) é o que me parece prejudicial e insustentável.

    Questionar as fontes e os factos referentes à sua (putativa) gravidez, mas sobretudo descontruir os “mitos” ou discursos socio-politicos posteriormente construidos interpretativamente sobre esses factos e essas fontes _não significa de modo nenhum uma defesa do regime salazarista, uma crítica ideológica ao PCP, ou uma tentativa de diminuição do papel histórico de Catarina Eufémia (ou dos movimentos de resistência e reivindicação dos trabalhadores rurais face à ditadura)_. Significa, apenas e só, q os factos, as fontes, as interpretações deles, a sua inscrição socio-cultural, e o seu papel instrumental na construção de identidades e em processos socio-politicos _são passíveis de análise_ e de desconstrução, no sentido de abrir novas possibilidades interpretativas.

    Creio q se alguém escrevesse uma tese sobre a desconstrução do “mito” de “Salazar como homem modesto e pobre” – tentando mostrar como a construção de toda uma iconografia de pobreza, exiguidade, serviço ao Estado, etc tinha sido instrumental na criação e manutenção do Estado Novo e da liderança de Salazar, bem como da sua imagem pública junto da população – as críticas não teriam sido tão duras, e seria talvez até bem.vinda. Se calhar a escavação desse discurso e dessa imagética, e das suas consequências não seria vista como “questões de lá caprina”, ou excessivo revisionismo. Ora Catarina Eufémia, _como agente histórico_ e _como artefacto histórico_, ou _como texto social_ está (ou deveria estar) tão aberta e passível desse tipo de investigação como Salazar, Álvaro Cunhal, ou a GNR na década de 50.

    2) O que nos leva ao segundo ponto, que me parece ser uma crítica e uma rejeição implícitas de uma certa maneira de fazer história, e de encarar a história. Não é apenas a tentativa de fechamento de algums campos e de algumas possibilidades (como criticámos acima), mas a incompreensão de uma epistemologia e metodologias pós-estruturalistas, ou pelo menos construtivistas.

    É claro que existem factos aos quais a tese se reporta. Catarina Eufémia _existiu_, e _foi morta_. É claro que existem fontes referidas a isso, que devem ser lidas de forma judiciosa e crítica, cruzadas, etc. O que não existe é uma posição “objectiva” ou “neutra” da qual um investigador procede à sua ordenação, relato,interpretação e análise, fora de um contexto muito específico. Os “factos” e as “fontes não são auto-evidentes, o que, aliás, justifica e conextualiza o papel do historiador como intérprete par excellence.

    Como Hayden White e Alan Munslow (entre outros) tentaram argumentar ao longo das suas obras, entre os “factos históricos” e a “história” (profissional ou popular) que deles se produz medeiam muitas instâncias interpretativas, contigentes. E, como tal, a revisão e abertura, a escavação e o questionamento dessas “distorções” e dessas sucessivas (re)construções do discurso, bem como os contextos em q se produzem, e as consequencias q acarretam, são tarefas absolutamente centrais do historiador.

    Isto não quer obviamente dizer – como muitas vezes se ouve em críticas mais ou menos ignorantes da espistemologia pós-moderna – que “vale tudo”. É claro que Catarina Eufémia não era um extraterrestre azul, e que as balas que a mataram não eram ficções poéticas. A interpretação dos factos está firmemente ancorada em práticas extra-discursivas. O que não é tão claro é _como_ ou _porquê_ se deu, por exemplo, um processo de crescente identificação da sua resistência e morte com um estatuto de militância no PCP, ou de _como_ e _porquê_ se fez sentido das circunstâncias em termos quasi-religiosos.

    Daí que a tese – q, volto a salientar, ainda não pude ler na íntegra, dispondo apenas do excerto aqui disponibilizado – me pareça absolutamente justificada e até importante do ponto de vista histórico, e não vejo, pelo menos a partir do pequeno excerto disponível, porque seja “leve” ou “menos séria”.

    Perdoem-me o tamanho do comentário, e obrigado pela paciência.

  32. Diego Palacios Cerezales

    Disculpen que intervenga en castellano.

    No creo que sea bueno un exceso de “objetivismo”. Para el objetivismo, “un muerto” es “un muerto”; sin embargo, políticamente, cada muerto en una acción policial de dispersión de una multitud movilizada tiene un “precio” diferente.

    Que a un Estado le “cueste” políticamente haber matado a un ciudadano o ciudadana, depende del juego de interpretaciones sobre esa muerte que se produzca en la arena política. La divulgación del caso, el uso del funeral como lugar para desafiar al gobierno o la conversión del fallecido en un ejemplo de virtudes, aumentan el coste de las acciones represivas del Estado.

    Si no hubiese procesos de movilización y mitificación similares al que se produjo en torno a Catarina Eufémia, a un gobierno le saldría gratis matar ciudadanos.

    Así, en los relatórios de la GNR y de la PSP de la década de 1960 y en comunicaciones internas de variados responsables políticos, es común la referencia a los “problemas de imagen” asociados al uso de armas de fuego en la represión y a la necesidad, por ello, de invertir en nuevas técnicas “no letales” de “restablecimiento del orden” (gases lacrimogénios, jactos de água, cassetettes… ).

    Tampoco creo que los muertos sean un buen indicador de la naturaleza de un régimen. Las protestas rurales en la Italia democrática entre 1945 y 1960 se saldaron con más de 50 personas abatidas por los Carabinieri (Cf. Donatella Della Porta), mientras que yo “sólo” he conseguido contar 29 en Portugal, entre 1930 y 1974 (44 años), que puedan atribuirse a acciones de “restablecimiento del orden” en espacios públicos (datos provisionales, excluyendo insurrecciones, sólo 1 muerto contabilizado posterior a 1965). No son los muertos los que caracterizan “objetivamente” la naturaleza de un régimen. A menos que los muertos formen parte de una política deliberada de genocidio o politicidio.

    Finalmente, si las técnicas de acción anti-motín se sofistican y pasan a ser eficaces con pocas probabilidades de ser mortíferas… ¿significa eso que la dictadura es menos dictadura? … yo estoy tentado a responder que no.

  33. Suponho ser árduo o trabalho de pesquisa a que se se entrega o historiador, ou investigador, tendo por objectivo desmistificar, desmontar, desconstruir, o que outros com igual engenho e argúcia, meticulosamente conceberam e erigiram, em prol de um específico objectivo.
    Árduo, mas naturalmente gratificante, quando, retirados adereços e atavios, se chega finalmente ao “corpo”.
    Creio pois, perfeitamente legítimo, o trabalho de investigação levado a cabo por Natália Santos.
    A autora escolheu, da nossa contemporaneidade o mito de Catarina Eufémia. Porque não? Não vem daí mal ao mundo; é um mito como outros.
    Porém, neste caso, retirados os “postiços”, o essencial mantem-se incólume. Catarina (ou Maria, ou Francisca), trabalhadora agrícola, foi morta a tiro por um tenente da GNR – baptizado com o celestial nome de Carrajola -, quando protestava contra as condições de trabalho a que ela e companheiras estavam sujeitas; e ponto final.
    Levando em conta a experiência entretanto adquirida com o trabalho em apreço – ainda que de um mito menor se trate – atrevo-me sugerir a Natália Santos, uma investigação igualmente aturada sobre um outro mito, este de inigualável projecção, mas igualmente enquadrado pela ruralidade pobre do Portugal profundo.
    Refiro-me obviamente ao mito dos três pastorinhos de Fátima.
    Jacinta, Lúcia e Francisco, crianças entre sete e dez anos, ter-se-ão encontrado por várias vezes com Nossa Senhora, na paisagem inóspita da Cova da Iria.
    Não havendo testemunhas nem provas factuais, restaram os relatos de Lúcia, já que Jacinta e Francisco, como sabemos, faleceram pouco depois.
    Quase nove décadas passadas, Fátima é o altar do mundo católico e lugar de peregrinação para milhões de crentes.
    Ora, comparado com este, o mito de Catarina é mesmo uma minudência histórica.
    Vamos nesse Natália?
    A todos, muito boa noite.

  34. António Jacinto Pascoal

    Neste momento, estou-me a borrifar um pouco para o mito. Sobre isso escrevi num livro que organizei, denominado «As Mulheres Visíveis. Antologia de Poemas sobre Mulheres» (Edição Alma Azul). É difícil escrever sobre alguém sem mitificar – aliás, escrever sobre alguém é fazer uma aproximação à pessoa, pelo que nunca se escreve sobre «ela mesma», mas sobre a impressão que temos dela. Mas isso fica para as questões da relação sujeito/objecto.
    Entretanto, deixo-vos um poema meu que está incluído num livro chamado «No Meio do Mundo», a sair em 25 de Abril próximo. Se isto não for outra mistificação, então não sei nada sobre mitos.

    PRANTO SOBRE A MORTE DE CATARINA EUFÉMIA

    Para se poder construir a ordem do mundo
    é que tu morreste.
    O teu nome permanecerá intacto
    e depois de ti nada mais se poderá invocar.

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